sábado, 26 de março de 2011

segunda-feira, 14 de março de 2011

O homem com o cigarro



Não havia sax, nem mesmo baixo, mas as notas tocaram claras saindo dos fones em seus ouvidos quando ele chegou. Aqueles passos sem pressa acompanhavam as batidas do som do Morphine, e ele nem imaginava que fazia parte de um filme imaginário na cabeça de uma desconhecida.

As pernas vestiam um jeans velho, o braço protegia um jornal de quinta, enquanto as mãos se ajudavam para acender o cigarro. O homem com o cigarro. Era assim que o chamaria, não possuía nome ainda, não conhecia nem mesmo a sua voz.

Os olhos dela deixaram os gestos dele para ver rapidamente se seu ônibus se aproximava, mas nenhum ruído, nenhum sinal da carroça velha. Então voltou com seus olhos espiões para o rapaz.

Discretamente sentou-se no banco vazio do ponto de ônibus, enquanto observava o rapaz que estava a poucos metros. Ele não possuía chapéu ou mesmo suspensório, mas lhe fazia lembrar o John Lurie nos filmes do Jarmusch, e poderia vê-lo em uma imagem preto e branco se fechasse os olhos. Segurava com uma das mãos o jornal, procurando se informar das principais notícias e ao mesmo tempo liberava a fumaça tragada do cigarro para o vento.

Então um ônibus se aproximou, e estacionou trazendo para o ponto uma fumaça negra, e um barulho que lhe irritava os ouvidos. O barulhento parou diante de seus olhos, leu o letreiro e não era aquele que a levaria ao seu destino, era o ônibus esperado pelo desconhecido que passou por ela deixando um cheiro de cigarro acariciar o seu nariz e partiu.

Em breve voltaria a vê-lo novamente. O desconhecido. 

Ennui...




Pois sim, o que Anna Karina diz nos primeiros minutos desse vídeo é mais ou menos o que pensava outro dia.

Poderíamos, às vezes, ter o poder de mudar de corpo e de mundos quando a nossa vida caminhar em um dia sem graça.  (Um domingo, por exemplo, pois é um dia triste). Outro lugar, “outro mundo, outro mambo”

Não reclamo de minha vida, gosto dessa estrada de 21 anos, mas é agradável um ritmo diferente de vez em quando. Rotinas não me agradam muito, afinal sou aquariana. Gosto de pessoas conversando, passando, um pouco de agitação, mas também me agrada o silêncio e traquilidade.


E assim o tédio some e reaparece, e o meu tédio adora os domingos. 

sábado, 12 de março de 2011

Eva


A tarde estava tranqüila, o mundo funcionava do lado de fora, mas Eva não se importava. Estava mergulhada em uma leitura que logo concluiria. Dias atrás ganhara um romance, “O Amante”, de Marguerite Duras. Há uma semana perdia-se nas páginas entre as linhas e palavras que revelavam a história da escritora ainda quando jovem e seu amante chinês e homem maduro.

Encontrava-se sentada no sofá, sua concentração estava ali nas últimas páginas. Os olhos dançavam da esquerda para direita, lendo, penetrando em cada frase, cada parágrafo. Seus olhos atentos, possuindo sede cada vez mais naquela leitura leram as últimas palavras do livro. Seu peito suspirava diante da história que não lhe pertencia, mas que era como sua.

... Dissera-lhe que era como dantes, que ainda a amava, que nunca poderia deixar de a amar, que a amaria até a morte. (Do livro “O Amante”, de Duras)

Olhou além, por cima do livro, perdia-se dentro de pensamentos secretos, a história estava ali ainda, presa em sua mente. Refletia sobre a garota de 15 anos e seu amante chinês?

Era cedo ainda, estava no meio da tarde. Foi ter no quarto de sua mãe, levou o livro junto, em mãos, junto ao corpo. Seus passos a levaram para diante do guarda-roupa, não olhava para os lados, não dava atenção a nada naquele quarto a não ser ao guarda-roupa. Em sua mente como em uma fotografia podia ver o que procurava. O móvel estava aberto mostrava-lhe blusas, calças, saias, mas o que procurava era aquele velho vestido de sua mãe. Sua mão buscou no fundo do guarda-roupa a seda, a cheirou, pálpebras fecharam e abriram como se lhe trouxessem lembranças. Um sorriso tímido nasceu nos lábios. Em poucos minutos abandonou o livro na cama e vestiu o pano fino, o corpo que estava na frente do espelho parecia habituado a vestir-se daquela maneira. Voltou ao móvel e de lá tirou o cinto, o cinto de couro marrom. O envolveu na cintura, fechou e pronto. Novamente diante do espelho, o pente penetrava com seus dentes entre os fios, dividiu em duas metades e delas fizera surgir duas tranças. Nos lábios passara o velho batom num tom escuro de vermelho. Tocou com uma das mãos o cabelo deu-se conta de que algo lhe faltava. –O meu chapéu?

A campanhia disparou, quem era? Seus olhos cresceram no rosto, deixou o quarto e mesmo em passos lentos logo estava na sala. Ela, suas tranças e seus lábios avermelhados. Rodou a maçaneta e abriu a porta, lá estava, ele. O outro a olhava curioso havia um sorriso querendo explodir em sua boca, mas conteve no primeiro momento. Atravessou a entrada e agora observava ela fechar a porta, voltou-se para ele possuindo a mesma expressão com a qual o recebera ao abrir. Estava em silencio, sem riso, sem seriedade. Não havia nada. Apenas ela em silêncio e com aqueles olhos que pareciam lhe atravessar fundo o corpo.

- Que roupa é essa? Ele perguntou deixando finalmente o sorriso que havia escondido aparecer. Não obteve resposta da outra. Ela o olhou apenas, parecia menosprezá-lo por um momento e sua pergunta boba, sem graça, de deboche.

-Eu que pergunto a você. Que roupas são essas que você veste? Onde está aquele homem elegante, aqueles belos sapatos de antes? Onde está o meu amante de antes?

Enquanto ela sentava-se no sofá de pernas cruzadas, esperava uma resposta do outro com aquele olhar rebelde, sorriso irônico escondendo dentes nos lábios avermelhados. O outro não se conteve, novamente lhe veio e dessa vez do fundo da garganta uma gargalhada dessas que o fez ficar descontrolado. Não conseguia parar de rir. Ele foi ter com ela, sentou-se ao seu lado tocando o rosto dela.

-Que história Eva, que papo estranho, tá louca? Você bebeu o que hein?

O sorriso irônico desmanchou-se dos lábios dela. Desviou o rosto da mão que lhe fazia carinho e avançou sobre o outro lhe roubando um beijo. Não eram os mesmos lábios de antes que o beijava, foi essa impressão que o outro teve. Havia algo, menos doce, mais ousado que antes; as mãos que lhe tocaram o rosto enquanto lhe roubava aquele beijo também eram outras, eram mãos que o prendiam, que o arrastava para ela.

-Meu nome não é Eva. Quem é Eva, do que você está falando?

Não houve respostas. Ele parecia aéreo, seus olhos observavam aquela diante dele, analisando. Aqueles olhos estavam diferentes, o dominava, parecia devorá-lo. Os braços que sentia dar a volta em seu pescoço eram mais decididos, menos medrosos, o levavam para junto da outra. Sua namorada havia mudado. A conhecia como amável, olhos tímidos que pareciam medrosos em encará-lo fundo nos seus, lábios doces que precisavam ser provocados para matar o desejo de um beijo. Um pouco silenciosa às vezes. Chegavam a ouvir suas próprias respirações enquanto o tempo passava e eles abraçados no sofá da sala de estar. Essa era a Eva que ele conhecia, era a Eva que parecia não estar mais ali.

Desenvolvera outro Eu, ou melhor, trouxera de seu interior outra metade de si desconhecida para o mundo dos outros. Essa outra metade era reprimida, travada. Possuía olhos que penetravam fundo em olhos desejados, mãos que buscavam sem medo o que lhe roubava a atenção. E principalmente, palavras que saiam sem receio de lábios decididos. Era outra Eva. A ousada.

-Melhor você ir trocar de roupa a gente vai se atrasar para o filme.

-Que filme? Eu não quero sair vamos ficar e aproveitar a tarde aqui mesmo.

-Eva, sério. Eu tô gostando e tudo dessa sua... Enfim... Mas você está muito estranha...

-E você está muito chato.

O menosprezou. Deixou o sofá decepcionada, estava agora de pé no meio da sala diante dele, o olhava de cima para baixo, esperando uma reação da parte do outro. Ele estava lá sem moral alguma para com ela, bestificado com toda aquela atitude que era novidade aos seus olhos. Fez que ia dizer algo, mas nada saiu de sua boca muda, parecia engolir palavras que arranhavam sua garganta, parecia confuso. Naquele instante começou um diálogo de olhares, uma comunicação silenciosa, porém era como se falassem aqueles olhares.

Os olhos dela diminuíram, lembrava o olhar de antes, aquele da menina doce às vezes um pouco silenciosa. Mas não era a de antes. Aqueles olhos diziam fixos ali no do outro, observando de cima para baixo; dizia com aquele ar autoritário e teimoso que ele devia se levantar e decidir se atenderia aos desejos dela ou iria embora. Ele por sua vez começava a sentir um nó dentro de si, uma dor pelo desprezo daquele olhar, pela frieza. Conseguia comunicar o sentimento de tristeza que começava a dominar ele através dos olhos miúdos.

Olhares tão fixos e silenciosos que pareciam não respirar por alguns minutos. Ele de baixo ainda imóvel no sofá, ela de pé diante dele, braços cruzados e mandões, e ainda um sorriso quase dócil que uma vez ou outra nascia nos lábios de maneira discreta, sem dentes.

Parecia cansado de ser provocado, deixou o sofá como em um salto. Suas mãos foram sem paciência nos braços dela como um militar furioso, no rosto os lábios eram sérios. Os olhos pareciam penetrar fundo nos dela que cresceram imediatamente no rosto feminino, parecia assustada, mas não desmanchava aquela postura de teimosia, de rebeldia que a dominava.

-Seu nome é Eva...

A sacudia, sua impaciência impedia que pensasse no que estava fazendo, não percebia que parecia agressivo. As pálpebras dela se fecharam levemente e em poucos segundos abriram-se como se despertasse de um sono leve. Eram olhos miúdos, não mais aqueles grandes e assustados de poucos segundos atrás; os lábios mexeram acompanhados de um estalido quase surdo e disse:

- Rui. 

Sorriso largo no rosto




Nunca mais havia chorado por felicidade. E nem explico, apenas sinto...

Sorriso largo no rosto. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

Conto de Inverno (Conte d'hiver)


Catherine do “Jules et Jim,Gabrielle de  “Uma garota dividida em dois”... E Felicie de “Conto de Inverno” do Eric Rohmer, uma mulher que ama três homens de maneiras diferentes.

Finalmente comecei a ver os filmes da série de “Contos das quatro estações” do Eric Rohmer. O primeiro lançado em 1990 foi o “Conto de primavera”, mas comecei pelo segundo, “Conto de inverno” de 1992.

Nesse filme, Rohmer aborda a história de Felicie que após viver um romance arrebatador em umas férias de verão, dar o seu endereço errado ao rapaz por conta de um lapso e isso impede que eles voltem a se encontrar. Mas, ela jamais esqueceu Charles, e a sua filha fruto da relação deles naquele verão é a sua lembrança viva dele.

Cinco anos depois, Felicie se encontra em Paris onde vive com sua filha Elise e sua mãe. A moça mantém um namoro com o cabeleireiro Maxence que está prestes a se divorciar, e também mantém o romance com o intelectual e bibliotecário, Loïc.

Felicie ama Maxence e Loïc de maneiras distintas, mas o seu amor por Charles a impede de seguir sua vida seja com qualquer um dos rapazes.

Ela não engana ninguém, é fiel aos seus sentimentos, um rapaz sabe do outro e também da existência de Charles e da esperança de reencontrá-lo. Mas, ninguém acha provável esse reencontro.

Aqui Rohmer também discute filosofia, religião, coincidências, destinos e probabilidades.

Em uma conversa com Maxence, no final de semana em Nevers, Felicie e o namorado discutem a probabilidade. Ela pensa em respostas que expliquem o porquê de Charles não a ter encontrado, mesmo com o endereço falso.

Decidida a morar com Maxence em Nevers e tentar dar um rumo a sua vida, a personagem vai à casa de Loïc em uma noite avisá-lo de sua decisão. Ao chegar à casa do bibliotecário, ele está com amigos discutindo sobre um romance, ela que se diz ignorante apenas ouve e observa a conversa.

Em determinado momento do filme confessa a mãe que não gostaria de ser esposa de Loïc, pois que não a agrada ser dominada intelectualmente, mas fisicamente sim.

Após o jantar, ele e seus amigos discutem religião, a alma e o sobrenatural. Loïc é católico e quando sua amiga, espírita, diz que não há diferença entre o sobrenatural dela e o dele, pois todas as religiões acreditaram em reencarnação, ele discorda. Diz que ela recusa o sobrenatural cristão e aceita os outros, assim sendo alvo de charlatões. Ela, por sua vez, diz não conhecer nenhum charlatão, pois não faz parte de uma seita, não dar dinheiro a ninguém e compra livros usados. Ele sim é vitima do charlatanismo cristão.  

Loïc continua sua defesa dizendo que a reencarnação suprime a responsabilidade, que podemos ser responsável por apenas uma vida. Então, Felicie, que até então apenas observava, decide expor sua opinião discordando, pois para ela se o espírito passa por diversos corpos ela pode se aperfeiçoar aos poucos e isso suprime a responsabilidade. Apesar de achar encantadoras as palavras da namorada, ele é contra, diz que não passam de palavras.

Apesar de amá-la é racional o tempo todo, é um homem dos livros. Ela sente. Felicie diz que se um dia dissesse que o amava ele consultaria Shakespeare.

Rohmer aborda a fé em “Conto de inverno”.

Felicie está vivendo em Nevers com Maxence, e em uma tarde vai a Catedral com sua filha Elise que deseja ver o presépio. Ela não é católica, se diz brigada com a religião e é naquele momento na igreja que Felicie conversa com Deus, á sua maneira ela não reza, vai além, estabelece contato com Ele refletindo e então descobre sua fé e nela encontra uma luz para a sua vida.

Decide deixar Maxence e voltar a Paris com Elise, mas não para Loïc, apesar de procurá-lo, ela volta para a sua esperança de reencontrar Charles, o pai de sua filha.

De volta a Paris, Felicie acompanha Loïc que vai ver uma peça de Shakespeare, “Conto de inverno” título com o qual Rohmer também batiza seu filme. A personagem se identifica com a história da peça, se envolve completamente se emocionando durante a apresentação.

A peça trata de pessoas que supostamente mortas vão para o exílio e retornam ressuscitadas. Loïc se sente em dúvida, se a rainha, personagem da peça, mexeu-se porque ainda não estava morta ou se era magia. Felicie tinha uma certeza quanto a sua dúvida, para ela o que havia a ressuscitado foi a fé.

Foi a fé quem devolveu a esperança a Felicie, o acreditar em algo mais forte foi quem lhe deu força. Ela não se converte ao cristianismo, ela acredita em Deus, e sejamos católicos, evangélicos, espíritas, ou qualquer outra religião, é a fé que depositamos em Deus, pois existe apenas um, é ela quem nos dar equilíbrio.

Não possuo religião, mas é a fé que me coloca em equilíbrio e paz de espírito.

A coincidência ou destino (gosto de acreditar em destino) é quem leva Charles ao encontro de Felicie, em uma tarde do dia de ano novo.